NOVAS CENAS URBANAS
ARTE POLÍTICA
“A política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem 'ficções', isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o se faz e o que se pode fazer. (...) Desenham, assim, comunidades aleatórias que contribuem para a formação de coletivos de enunciação que repõem em questão a distribuição dos papeis, dos territórios e das linguagens – em resumo, desses sujeitos políticos que recolocam em causa a partilha já dado do sensível. (...) As 'ficções' da arte e da política são, portanto, heterotopias mais do que utopias.” ¹
REGIME ÉTICO, POÉTICO E ESTÉTICO DA ARTE
Jacques Rancière, em seu livro “A partilha do sensível” ¹, diz que, na tradição ocidental, a arte pode distinguir-se em três grandes regimes de identificação: ético, poético e estético.

No regime ético, a “arte” não é identificada enquanto tal, ela está integrada na questão das imagens, que não passam de meras aparências enganosas, com o único objetivo de educar os cidadãos através de sua inscrição na partilha da cidade.

“Essas imagens são objetos de uma dupla questão, tanto quanto ao seu teor de verdade, bem como ao seu destino: os usos que têm e os efeitos que induzem. Pertence a esse regime a questão das imagens da divindade, do direito ou proibição de produzir tais imagens, do estatuto e significado das que são produzidas. Com ela pertence toda a polêmica platônica contra os simulacros da pintura, poema e da cena.” ¹
O regime poético, ou representativo, já faz a distinção e identifica a arte que agora age no par poiésis e mimesis. Ela se desenvolve na normatividade que define suas condições para serem consideradas arte e apreciadas, entrando em analogia com toda uma visão hierárquica da comunidade.

“Denomino esse regime poético no sentido em que identifica as artes – que a idade clássica chamará de ‘belas-artes’ – no interior de uma classificação de maneiras de fazer, e consequentemente, define maneiras de fazer e de apreciar imitações benfeitas. Chamo-o representativo, porquanto é a noção de representação ou de mimesis que organiza essas maneiras de fazer, ver e julgar. Mas, repito, a mimesis não é a lei que submete as artes à semelhança. É, antes, o vinco na distribuição das maneiras de fazer e das ocupações sociais que torna as artes visíveis. Não é um procedimento artístico, mas um regime de visibilidade das artes.” ¹

Contrapondo-se ao regime representativo, está o estético. Nele, a identificação da arte não está mais atrelada às maneiras de fazer, e sim ao modo de ser sensível ao fato bruto gerado pelo artista. Essa sensibilidade, não remete ao gosto ou ao prazer, remete ao modo de ser dos seus objetos, que pertencem a um regime específico do sensível. A arte não está mais atrelada a regras, hierarquias, temas, gêneros ou a maneiras de fazer e suas ocupações sociais. Ela é o fim da ortodoxia na separação das artes, é a mistura de épocas, gêneros e sistemas.

“É esse modo específico de habitação do mundo sensível que deve ser desenvolvido pela ‘educação estética’ para formar homens capazes de viver numa comunidade política livre.” ¹

“Muito rapidamente, a alegre licença pós-moderna, sua exaltação do carnaval dos simulacros, mestiçagem e hibridações de todos os tipos, transformou-se em contestação dessa liberdade ou autonomia, que o princípio modernitário dava – ou teria dado – à arte missão de cumprir. “ ¹
A POLÍTICA DA ARTE
Rancière acredita que a arte que se enquadra no regime estético deve implicar um distanciamento e uma suspensão de toda relação entre a intenção de um artista e o olhar de um espectador, de forma a estabelecer um livre jogo no qual a arte não solicita nada do espectador e, ele, não deve produzir nenhuma ação sob supostos ditames da arte.

A imagem/arte para ser política, não precisa retratar injustiças sociais, suas causas e seus efeitos, levando o espectador a produzir novas formas de consciência para modificar tal realidade. Ela precisa visar uma transformação das relações entre os sujeitos que constroem e partilham um mundo, e assim contribuir para novas formas do sentido comum.
“O que é novo e significativo, portanto, não é a vontade de uma arte que saia de si mesma para agir diretamente no mundo. É a forma hoje assumida por essa vontade, uma forma de assistência individual aos mais desfavorecidos que, tanto as vanguardas artísticas como os construtores do socialismo, rejeitavam até pouco tempo atrás. O sonho de uma arte que construa as formas de uma vida nova tornou-se o projeto modesto de uma ‘arte relacional’: arte que busca criar não mais obras, mas situações e relações, e nas quais os artistas, como diz um teórico francês dessa arte, presta à sociedade ’pequenos serviços’ próprios a reparar ‘as falhas do vínculo social’. (RANCIÈRE, 2004b, p.3).” ²
A potência política está tanto nas imagens (materialidade signica), quanto nas relações e operações que as definem: “uma imagem é política quando deixam entrever as operações que influenciam na interpretação daquilo que vemos”.


PARTILHA DO SENSÍVEL: POLÍCIA x POLÍTICA
“A estética está ligada à partilha do sensível, a modos de organização e divisão do tempo e do espaço e a como tais modos permitem coisas, objetos e pessoas se tornarem visíveis.” ²

Partilha policial: configura uma ordem que determina um local específico para cada sujeito, formas de ser e dizer, limitando-os, enquadrando-os em uma determinada visão fixa do local de existência e importância deles.

Partilha política: É questionar o consensual, o inquestionável, e promover rupturas nos modos de aparência e circulação das palavras, corpos e imagens.

“Dar a ver aquilo que não encontrava um lugar para ser visto e, permitir escutar como discurso aquilo que só era percebido como ruído. (...) a imagem pode desvelar potências, reconfigurar regimes de visibilidade e questionar ordens discursivas opressoras.” ²


CENAS DE DISSENSO
IMAGENS POLÍTICAS = IMAGENS DISSENSUAIS

Essas imagens políticas ou dissensuais, são imagens que, a partir de seus próprios meios expressivos, promovem uma recombinação de signos capaz de desestabilizar os discursos dominantes, desconectar significações e visibilidades. Essas imagens permitem o estranhamento e a polêmica. Elas buscam retirar os corpos de seus lugares assinalados, libertando-os de qualquer redução à sua funcionalidade e dotando-os de rostos, ou seja, se tornando sujeitos políticos que aparecem no espaço coletivo de exposição, argumentação e negociação.



Os sujeitos com rostos, sujeitos políticos, ou melhor, sujeitos que agora constituem o espaço de maneira performática, são os espectadores emancipados comentados no eixo “cenas urbanas”. E esses espaços coletivos são denominadas por Rancière como cenas de dissenso, se contrariando ao consenso, ao enquadramento.

As cenas dissensuais são o espaço da partilha política do sensível, na qual imagens provocam desconexões e conexões de identidades e lugares de fala, libertando os corpos e promovendo a reconfiguração do mundo comum da experiência. Formam inteligências grupais que escapam os parâmetros consensuais.




A subjetivação política diz respeito a desidentificações que são justamente a ruptura com a ordem policial, que oferece a cada pessoa seu lugar e identidade. Essa subjetivação envolve a forma como os indivíduos aparecem na cena pública dissensual, para dizer de seu mundo através do olhar e da convocação de seus rostos.

“A lógica da subjetivação política não é jamais a simples afirmação ou negação de uma identidade, ela é sempre, ao mesmo tempo, a conexão e desconexão entre um lugar de fala percebido como próprio e uma identidade imposta por um outro, fixada pela lógica policial”. ²

“A política das imagens não se encontra no gesto de fazer denúncias, de solicitar do espectador solidariedade ou identificação com as personagens retratadas. Em vez disso, ela estaria na possibilidade de desconstruir imagens pejorativas, recriando, pelo discurso e pela interação inusitada, vozes e rostos, devolvendo-lhes nuances e facetas até então desconsideradas, possibilitando com isso, um processo de desidentificação. Tal processo abrange um questionamento da naturalidade, com que aos sujeitos é atribuído um lugar à abertura de um espaço de sujeito, no qual se inscrevem em cenas enunciativas por meio do discurso, da argumentação e dos recursos poéticos da experiência.”





SUBJETIVAÇÃO POLÍTICA
Entendo que as imagens políticas abrem possibilidades para o confronto e o debate, elas geram as cenas dissensuais em que os sujeitos passam a ser dotados de rostos e, assim, entram no processo de subjetivação política onde ocorrem as desidentificações. O sujeito então torna-se o espectador emancipado, em que nada se espera dele além de seu próprio processo de reconfiguração de signos através de sua inteligência e sensibilidade. Esse processo interpessoal proporciona uma atividade de reconfiguração do mundo comum da experiência e consegue transformar um local com uma partilha policial do sensível para uma partilha política do sensível. É justamente nessa transformação da partilha do sensível que procuro entender como que a tecnologia, aplicada nas artes e intervenções urbanas, podem contribuir.



A QUESTÃO DO “ESPAÇO PÚBLICO”
Em uma entrevista ³, a historiadora e crítica da arte, Rosalyn Deutsche, discorre sobre a questão do “espaço público” e, consequentemente, do que seria essa arte pública, quer a arte pública seja interpretada como "arte em locais públicos", "arte que cria espaços públicos", "arte no interesse público" ou qualquer outra formulação que reúna as palavras "público" e "arte". O discurso sobre a arte pública é não apenas um local de implantação do termo espaço público, mas, de forma mais ampla, do termo democracia.

Para Rosalyn, os defensores da arte pública frequentemente procuram resolver confrontos entre artistas e outros usuários do espaço por meio de procedimentos que são descritos como "democráticos", como o “envolvimento da comunidade” na seleção das obras de arte ou a chamada “integração” das obras com os espaços que ocupam. Dessa forma, eles deixam de lado a real conveniência e necessidade desses procedimentos, será que a tarefa da democracia é realmente resolver, em vez de sustentar o conflito? São indagações da historiadora.

Ela dá como exemplo de tal questionamento, quando a partir dos anos 80, as conversas sobre espaço e arte pública se intensificaram devido a uma reconversão urbana global na qual a opressão e exploração capitalista transformou as cidades no interesse do lucro privado e no controle estatal. Nessa época, a arte participou da concepção da renovação e do embelezamento desses espaços com o discurso de que elas atendiam as necessidades da sociedade, mas que na verdade, para ela, conferiam legitimidade democrática e ajudava a suprimir os conflitos sociais e as relações de opressão que produziram esses novos espaços.
Artistas e críticos insatisfeitos com o papel legitimador da arte pública e, comprometidos com a arte como prática social crítica, tentaram desmascarar a política de definições conservadoras de espaço público e redefinir a arte pública.




“Algumas pessoas, inclusive eu, encontraram um recurso valioso no conceito de ‘esfera pública’, uma categoria histórica analisada pela primeira vez por Jürgen Habermas como um conjunto de instituições nas quais cidadãos privados se reúnem para formular uma opinião pública que pode ser crítica ao estado. Um público, então, difere de outro público.” ³

A arte pública seria então, o instrumento pelo qual as pessoas se envolveriam na discussão política ou entrariam em uma luta política. Ela não necessariamente precisa estar localizada nesses espaços considerados públicos, ou seja, fora de museus e galerias.

“Por que usar o termo público para defender em vez de problematizar a divisão público/ privado? Por que usá-lo para restringir, em vez de proliferar, os espaços políticos? Por que usá-lo para apoiar a ficção de que o museu está isolado da sociedade? Esses usos são politicamente produtivos?” ³

"Todas essas práticas partem do pressuposto de que o espaço público, longe de ser uma entidade pré-dada e criada para os usuários, é, antes, um espaço que só emerge das práticas dos usuários. Como diz Vito Acconci, a arte pública cria ou destrói um espaço público. Em minha opinião, a questão crucial não é se, mas como um artista entra em um espaço." ³

Rosalyn explica que "Espaço público" não se refere simplesmente a locais urbanos físicos já existentes, como parques, praças urbanas, ruas ou cidades como um todo, eles não são evidentemente públicos, nem são os únicos espaços públicos. Ele também pode ser definido como um conjunto de instituições onde os cidadãos se envolvem em debates, como o espaço onde as identidades dos grupos sociais e a identidade da sociedade são constituídas e questionadas.



“A divisão real / irreal também leva à crença, sustentada por muitos teóricos espaciais hoje, de que devemos defender os espaços tradicionais, chamados de "reais" - praças e ruas urbanas, para por exemplo - contra novos arranjos espaciais - ciberespaço, mídia de massa, shopping centers que são descartados como "irreais". Essa rejeição, como a do museu como fórum público, é, penso eu, politicamente contraproducente, uma vez que nos impede de prestar atenção às reais lutas políticas que produzem todos os espaços e, portanto, nos impede de estender o campo da política espacial, onde o urbanismo se refere, em um sentido político amplo, não apenas ao modo de vida das pessoas nas áreas urbanas, mas à nossa maneira de viver juntos, com os outros, na cidade.” ³

“No entanto, apoio totalmente os esforços de artistas e críticos para usar objetos visuais - incluindo as coisas da cidade, como estátuas, monumentos, parques e edifícios - para ajudar a criar espaço público, para, por exemplo, permitir que os sem-teto possam sair de sua consignação a uma imagem ideológica e declarar seu direito à cidade, ou seja, seu direito à política. De forma mais ampla, apoio totalmente a implantação, ou reimplantação, de objetos visuais para, como escreve Acconci, ‘quebrar’ espaços que foram ordenados como públicos ou "fazer" espaços públicos nos quais as bases da unidade social e do poder podem ser questionadas. As reservas que expressei sobre os usos atuais do termo ‘arte pública’ surgem da minha crença de que é importante proliferar os espaços públicos, juntar lutas para tornar públicos muitos tipos diferentes de espaços, deslocar a fronteira entre o público e o privado e, ao fazê-lo, alargar, em vez de limitar, o espaço da política.” ³

“O que resta então como o significado de arte ‘pública’? Parece, para Deutsche, a marca qualificadora da arte pública não é seu lugar ou sua existência como objeto, mas seu efeito. Onde quer que esteja situado e de qualquer material que seja feito (se de fato é feito), o trabalho deve apoiar, em vez de suprimir, o debate democrático sobre os limites, tanto físicos quanto intangíveis.” ³





ARTE/CIDADE
A partir da introdução do livro 4 do Nelson Brissac sobre as intervenções urbanas do projeto Arte/Cidade, que aconteceu em São Paulo a partir de 1994, é possível, ainda, retirar bons questionamentos sobre a arte urbana contemporânea e seus efeitos e modos de operar.

São trabalhos que acabam refletindo as discussões e o embate com o local e, que trazem à luz lugares carregados de valor histórico ou simbólico ao confrontar situações espaciais e sociais, só colocadas pela metrópole. Nessa metrópole, toda intervenção é necessariamente pontual, sem pretender abranger o todo, pois cada gesto provoca contínuas rearticulações, dando novas funções e sentidos para locais e serviços. Aqui predomina o princípio da ação/reação.




“A intervenção é uma inscrição num fluxo mais amplo e complexo, que é a dinâmica urbana. Implica em entender a cidade como algo em movimento. Não na forma de vetor progressivo, orientado, mas em várias direções. (...) É um paradigma da metrópole contemporânea: uma vasta rede que existe por si, em que sempre se entra em movimento. (...) Isso sintetiza a natureza atual da metrópole: um universo onde só se pode interferir indiretamente, por reverberação. Uma ação, necessariamente local, ecoa em outros pontos, como por ondas. Não há mais como pretender uma ordenação planificada do espaço urbano.” 4



“Como a arte pode interagir com a produção real da cidade? O que fazer para que não se resuma a ‘arte na cidade’? pode ainda a arte propiciar um olhar novo, um pensamento prospectivo sobre a cidade? (...) Até que ponto a cidade, normalmente tida como espaço da funcionalidade e domínio do permanente (até mesmo por causa dos custos que envolvem qualquer ação de dimensões urbanas), pode ser tomada como um campo de experimentação, de testes? Como se pode fazer a invenção, ou ensaio mais comprometido com a criação, no âmbito do urbanismo? (...) É possível fazer da metrópole um canteiro de renovação da percepção, da experiência e da produção de espaço?”. 4



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1- RANCIÈRE, J. "A partilha do sensível". São Paulo: Ed. 34, 2005.

2- MARQUES, Angela. (2014). Política da imagem, subjetivação e cenas de dissenso. Discursos Fotograficos. 10. 61. 10.5433/1984-7939. 2014 v10 n17 p61.

3- DEUTSCHE, Rosalyn. “Art and Public Space: Questions of Democracy.” Social Text, no. 33, 1992, pp. 34–53. JSTOR, www.jstor.org/stable/466433. Accessed 19 May 2021. Tradução própria.

4- PEIXOTO, Nelson B.. Intervenções Urbanas: Arte/Cidade. 2ªed. São Paulo: Senac, 2013.