NOVAS CENAS URBANAS
CENA URBANA
Charles S. Peirce é considerado o pai da semiótica. Como todo pensamento é realizado por meio de signos, a semiótica (lógica) pode ser considerada como a ciência das leis gerais dos signos, ou seja, é a experiência de mediação cognitiva rumo à significação das coisas no mundo.
Neste eixo, tento explicar, didática e resumidamente, como entendemos e processamos o que existe na cena urbana e como a experienciamos - assunto necessário para pensarmos nossos corpos como políticos e entendermos a tradução da arte na cidade. Baseio-me principalmente em um curso feito na Escola da Cidade sobre semiótica aplicada na arquitetura ¹, que teve como guia as obras de Charles S. Peirce ² e John Dewey ³. Para falar sobre o que seria essa cena urbana, temos que abordar o espectador e vice-versa, onde as obras do Filósofo Jacques Rancière foram imprescindíveis.


SEMIÓTICA
SIGNO
Signo é qualquer coisa que, de um lado é determinada por um objeto (podendo ser imaginário ou do mundo físico) e, de outro, determina uma ideia na mente de uma pessoa, que é denominada interpretante do signo e determinada por aquele objeto.
SEMIOSE
Semiose é o processo de interpretação de signos por outros signos, ilimitadamente, que envolve uma cooperação de três elementos: um signo, seu objeto e seu interpretante. O interpretante final pode se tornar um signo e este gerar outro processo de semiose, ilimitadamente.
Por meio da semiótica é possível analisar os espaços arquitetônicos urbanos enquanto experiências que geram significados condicionados por diferentes signos e interpretantes, de tal forma que geram hábitos, símbolos e modificam e direcionam as condutas humanas nesses espaços.

O ato de construir e vivenciar o espaço arquitetônico e urbano já é um ato semiótico.


Para Peirce, nossa ideia de qualquer coisa é nossa ideia de seus efeitos sensíveis, ou seja, daquilo que aparece, da fenomenologia. É um pensamento aristotélico e anti-platônico, já que acredita que todo conhecimento parte da experiência sensível. A qualidade de sentimento vira um signo pois o recebemos de uma forma sensível, depois vamos reconhecer esse sentimento e transformá-lo em cognição, o sensível portanto, não se torna o contrário do lógico.

3 TIPOS DE EXPERIÊNCIA NA SEMIOSE
Experiência de hiato de tempo, de presentidade, é sentimento puro e imediato que não envolve análise, comparação ou qualquer processamento de cognição. Qualidade de sentimento é o representante psíquico da primeiridade e ele não é partilhado. Qualquer pensamento envolve um tipo de qualidade de sentimento por trás.
Experiência de primeiridade
Experiência de segundidade
É o fato bruto que se materializa no mundo da alteridade, é específico e partilhado. Pode ser também a memória pois o passado é o fato bruto que independe de nós, o objeto do signo pode ser imaginário.
Experiência de terceiridade
É o pensamento, o processo de semiose que conecta a qualidade de sentimento de primeiridade com o fato bruto da segundidade.
EXEMPLOS
Sentimento
Experiência de interioridade, contínua e singular (único e irredutível) – primeiridade.
Sensação
Experiência de exterioridade, está ligada aos nossos 5 sentidos, gerada pelo contato com a alteridade e com o fato bruto, é particular (partilhado com outros particulares iguais) – segundidade.
Pensamento
Experiência de interioridade, definida e geral (regra que podemos ver em vários lugares) – terceiridade.
A cor vermelho sem definição de alguma memória, pode ter uma infinidade de tonalidades na nossa cabeça e assim, gerar um sentimento. Ver uma cor vermelha, de um objeto bruto que está na alteridade, gera uma sensação, e pensar que o vermelho significa paixão ou raiva, já é um pensamento.
PERCEPTO
Percepto é o vetor da percepção. É o elemento de segundidade, que chega a nós através da alteridade (de um fato bruto) e engloba os nossos 5 sentidos gerando uma sensação.
JUÍZO
O percepto é transformado na nossa mente por um juízo, o primeiro julgamento que fazemos. Este é o ponto de partida para todo pensamento crítico, o meio do caminho entre o que chega para nós pela sensação e a formulação de um signo, ou seja, é a conscientização do percepto. É um juízo estético e sensorial não passível de crítica, podendo estar de acordo com a realidade ou não.
REPERTÓRIO
O repertório afeta todo o processo perceptível, ele afeta a recepção dos perceptos, selecionando-os e permitindo uma comunicação entre os perceptos e as ideias que são nossas memórias e juízos prévios. Nós deixamos de perceber aquilo para cuja interpretação não estamos preparados.
Criamos esses hábitos que guiam os nossos sentimentos estéticos na hora de avaliar obras de arte - é aprender a gostar ou ensinar modos de olhar. Quando estamos em um local buscamos determinadas familiaridades e elas acabam gerando sentimentos de acordo com esses hábitos de sentir, como: beleza, feiura, sublime, grotesco, pitoresco, kitsche, etc.. Esses sentimentos se tornam um juízo estético, como explicado anteriormente, e aparecem imediatamente devido ao hábito de sentir. Para Peirce, o sublime é a experiência estética mais poderosa, pois gera o choque, que por sua vez gera uma mudança no hábito de sentir, ou seja, há a catarse.
HÁBITOS DE SENTIR
SEMIOSE ESTÉTICA
Capacidade da arte de gerar, a todo momento, novas interpretações.
NATUREZA ONTOLÓGICA DA ARTE
No conceito de obra aberta de Humberto Eco, a obra ou o objeto é único, o que variam são suas interpretações e, elas podem acontecer concomitantemente sem anular a outra, assim como em seu romance, “O Nome da Rosa”, no qual pode haver mais de uma verdade interpretativa. O limite para esta interpretação é intrínseco somente ao objeto, ou seja, à natureza ontológica da obra de arte, sua existência independente de nós.
Para Peirce, essa natureza ontológica é o objeto dinâmico, este é inapreensível, nunca será completamente envolvido por uma semiose, não o acessamos como um todo. Só temos acesso a parte que ele aparece para nós, que é o objeto imediato, determinador do signo. Esse objeto imediato pode mudar a cada vez que entramos em contato com ele, podemos perceber signos diferentes pois nosso repertório já mudou. É o caráter polissémico da obra de arte que coincide com o conceito de obra aberta de Humberto Eco, atuando tanto como objeto bruto quanto como signo.
OBJETO DINÂMICO X OBJETO IMEDIATO
Se a pessoa não estiver aberta a toda essa cadeia estética, incluindo a percepção, o juízo estético e a abdução, não haverá livre interpretação e não será ativada a abertura a polissemia que a obra de arte é capaz de proporcionar. Será uma interpretação mecânica, gerada por concepções previamente estabelecidas a partir de crenças artísticas e estéticas cristalizadas. Assim, pouco se extrai da obra em si, apenas se repetem identificações de valores estéticos conhecidos do receptor, que não conclui o processo de semiose e, portanto, não há a quebra de hábito.

Os hábitos de sentir também podem interferir na cadeia estética pois selecionam os critérios de relevância, que criam a mediação com a arte e podem acabar bloqueando os juízos perceptivos. Consequentemente, a experiência estética é velada, impedindo polissemias e abduções interpretativas da arte.

É neste processo entre percepção, juízo e abdução no estético, onde acontece a transformação das qualidades de sentimento em signos de natureza estética, ou em um conjunto de signos que possibilitará um sentimento ser generalizado na arte.

Neste contexto, posteriormente, a arte dará vazão a construção de preceitos, valores e ideias, transformando qualidades estéticas em símbolos e condutas estéticas.
CADEIA ESTÉTICA
CIDADE COMO EXPERIÊNCIA
Tanto a experiência perceptiva de Peirce quanto a experiência de percepção estética de Dewey, buscam a origem dessa experiência estética, bem como explicitar como ela, no comum, pode ser avivada e trazida à tona.

Podemos encontrar um elemento estético na experiência comum, algum aspecto que nos retire da temporalidade e da experiência automática, do hábito, e nos transporte para algo singular. Para John Dewey, a experiência cotidiana também pode ser artística, mas para a maior parte das pessoas, ela não consegue explicitar-se no ordinário e, talvez, a característica do artista seja justamente deixar-se levar pelo extraordinário no comum. A experiência estética e a experiência comum são uma via de mão dupla, pois a experiência estética saí da própria experiência comum, mas também nos retira dela.

“A arte joga fora os véus que escondem a expressividade das coisas vivenciadas; instiga-nos a sair do marasmo da rotina e permite que nos esqueçamos de nós mesmos, descobrindo-nos no prazer de experimentar o mundo à nossa volta, em suas qualidades e formas variadas.” ³

“Que dizer do jogo de luz em um prédio, com a mudança constante de sombras, intensidades e cores e com os reflexos combinantes? Se o prédio ou a escultura fossem tão estáticos na percepção quanto são na existência física, estariam tão mortos que o olhar não pousaria sobre eles, mas passaria de relance. É que o objeto é percebido por uma série cumulativa de interações.” ³
Cada estrutura que encontramos na cidade é um “tesouro de histórias e memórias”, “registro de expectativas acalentadas para o futuro” e também um repositório existente de valências afetivas, perceptivas e simbólicas que expressam os valores da vida humana coletiva.

Dewey não afirma que a arquitetura é a forma de arte mais elevada, entretanto, o mundo construído nos envolve em todos os níveis da nossa vida cotidiana e confirma sua afirmação de que a experiência estética é uma questão de percepção no sentido mais amplo, até a percepção imaginativa, além de serem universalmente acessíveis. A importância do mundo construído está em disponibilizar sua riqueza perceptiva e simbólica no dia a dia, são artes invasivas contidas nas cenas urbanas. Essas cenas variam de acordo com a época do ano, horário do dia, regime político e, principalmente, de acordo com seus espectadores, que de espectadores já não têm mais nada.

Para o filósofo, um objeto é considerado obra de arte quando ocorre uma experiência plena (contemplação, poiésis e fruição) no processo de produção da arte. Essa experiência precisa ser igualmente vivenciada pelo espectador para que ocorra uma experiência estética propriamente dita que se transformará em uma experiencia artística. Ele acredita que o espectador deve recriar o objeto para ser um ato de arte, ele tem que ser ativo, mesmo que a ação seja a semiose estética, ou seja, uma ação de pensamento. Há um trabalho feito por parte de quem percebe, assim como há um trabalho feito por parte do artista e do arquiteto.
“Depende de nós determinar se os significados e valores incorporados nessas estruturas nos animam ou nos amortecem, e se eles exemplificam e promovem os ideais de uma vida digna a ser vivida em todas suas dimensões – e, se não, porque não.” 4

“E.V. Walter em seu ‘Placeways: A theory of the human environment’ (1988), que é dedicada ao desenvolvimento de ‘topística’ (do grego topos, ‘lugar’). Walter escreve: ‘A experiência humana cria um lugar, mas um lugar vive à sua maneira. Sua forma da experiência ocupa as pessoas – o lugar localiza a experiência nas pessoas. Um lugar é uma matriz de energias, gerando representações e causando mudanças na consciência.’ (p131)”. 4
A CENA
Rancière considera a cena sendo fundamentalmente anti-hierárquica, na qual as suas condições são inerentes à sua própria efetuação. Diferentemente de vários pesquisadores de filosofia, para ele, a “cena” é uma rede complexa de relações em que o trabalho de construí-la se dá ao mesmo tempo que ela é identificada. Além disso, ele define a nova ficcionalidade, na qual os fatos não acontecem mais no tempo dos “historiadores de ofício” e sim de maneira anacrônica a partir da leitura de signos pertencentes a um lugar, um grupo, um muro ou um rosto.



“(...) define a nova ficcionalidade: a nova maneira de contar histórias, que é, antes de mais nada, uma maneira de dar sentido ao universo “empírico” das ações obscuras e dos objetos banais. A ordenação ficcional deixa de ser o encadeamento causal aristotélico das ações ‘segundo a necessidade e a verossimilhança’. Torna-se uma ordenação de signos. (...) A ‘ficcionalidade’ própria da era estética se desdobra assim entre dois polos: entre a potência de significação inerente às coisas mudas e a potencialização dos discursos e dos níveis de significação.” 5

“Falemos em primeiro lugar do sentido de cena como implementação de um método. O método que segui em meu trabalho consiste em escolher uma singularidade, cujas condições de possibilidade se pretendem reconstruir a partir de uma exploração de todas as redes de significações que se tecem ao redor dela.” 6

“Não há real em si (...). O real é sempre objeto de uma ficção, ou seja, de uma construção do espaço no qual se entrelaçam o visível, o dizível e o factível.” 7


O ESPECTADOR
Até meados do séc XX: sociedade do espetáculo, o espectador era uma vítima da ilusão cênica - “aplastado em sua cadeira, afundado na escuridão”. Condição de configuração social da época denominada por Guy Debord como “sociedade do espetáculo”. A arte auxiliada de suportes tecnológicos alcançou um grau de verossimilhança com a realidade e daí, a concretude da ilusão por ela veiculada.

Anos 60: espectador passa a ser considerado um dos polos de atenção dentro da criação artística, porém supunham uma libertação e não uma emancipação.




A nova cena propõe novas condições aos que se alojam na plateia e que traduzem seus signos em evidência, nos termos de suas próprias experiências e inteligência, por isso chamados de espectadores emancipados.

“Assim, trabalhar no rumo da emancipação do espectador não implica em retirá-lo da cadeira e fazê-lo tomar a cena, (...), mas para partilhar uma experiência de tradução em comum, o que demanda um intelecto ativo e uma sensibilidade desperta, onde o espectador possa ‘fazer seu poema com o poema que é feito diante dele’.” 8

Essas características dadas por Rancière à cena foram fundamentais para começar a pensar nesses espaços urbanos repletos de signos e semioses que chamo de cenas urbanas. Já a esfera política dessas cenas, será melhor desenvolvida no eixo “arte política”.
A EMANCIPAÇÃO
A partir dos anos 80: a cena teatral estava aberta ao delírio imaginário, operando um progressivo deslocamento entre texto e imagem. A cena se torna um laboratório de investigação e um território para confrontos e disputas, na qual mais do que conter um certo discurso, evoca, antes, suas contradições e incongruências. A teatralidade é o deslocamento dos signos, suas conjunções impossíveis e seus confrontos diante do olhar do espectador que agora é emancipado.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1- Conteúdo de aula. Matéria “Semiótica da Arquitetura: o espaço arquitetônico como experiência e signo de engendramento de condutas humas”. Prof. Lucia de Souza Dantas

2- PEIRCE, Charles Sanders. (1931-35 e 1958) The Collected Papers of Charles Sanders Peirce. Edited by Charles Hartshorne, Paul Weiss, and Arthur W. Burks. Cambridge, Massachusetts, Harvard UniversityPress, 1931-35 e 1958. 8 vols. Eletronic Edition. Traduzido por: Lúcia de Souza Dantas.

3- DEWEY, John. Arte como experiência. Trad. de Vera Ribeiro. 1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

4- Innis, R. (2019). Entre a mão pensante e os olhos da pele: estética pragmatista e arquitetura. Cognitio: Revista de Filosofia, 20(1), 77-90.




5- VOIGT, André F. O conceito de “cena” na obra de Jacques Rancière: a prática do “método de igualdade”. Disponível em: https://www.scielo.br/j/kr/a/GSgR36CsZBF7LKbdj7W7mgh/?lang=pt. Acesso em: ABRIL. 2021.

6- RANCIÈRE, J. "La méthode de l'égalité". Montrouge: Bayard, 2012a.

7- RANCIÈRE, J. "O espectador emancipado". São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012b.

8- MOSTAÇO, E. Emancipação, a cena e o espectador em jogo. Sala Preta, [S. l.], v. 13, n. 2, p. 200-215, 2013. DOI: 10.11606/issn.2238-3867.v13i2p200-215. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/69089. Acesso em: Abril. 2021.