NOVAS CENAS URBANAS
ESPAÇO VIRTUAL
O DESENVOLVIMENTO DE UMA IDEIA...
Segundo Silke Kapp¹, para Flusser² (1980), as novas tecnologias possibilitam uma “rede de comunicações dialógicas” na qual ocorrem trocas de ideias e perfuram o espaço privado por todos os lados e geram conexões. Flusser diz não querer recuperar o espaço urbano político que se tornou obsoleto junto com a polis, privilegiando o caráter dialógico das conexões que faz com que cada indivíduo seja receptor e emissor. “Devemos aprender a pensar ciberneticamente, em vez de politicamente.”

Uma outra abordagem de Flusser a respeito da cidade, procura ir além das dimensões de tempo e espaço – no sentido de tempo histórico e espaço geométrico – e argumenta que o velho mundo das “coisas que nos cercam” perdeu sua evidência. Para ele, a cidade agora é entendida como não-coisa e inobjeto, já que as novas tecnologias abrem possibilidades para a telepresença, dissolvendo o mundo físico em redes e nós de relações. A cidade agora não teria casas, praças e templos, ela seria um emaranhado de fios e “imaterial”.

“Flusser faz então o pleito de que deveríamos conceber a cidade não geometricamente, como uma superfície delimitada, mas topologicamente, como dobra ou distorção num campo, semelhante a um campo gravitacional ou a uma rede. (...) a cidade é o lugar da atualização de virtualidades intra-humanas.” ¹


A professora Silke Kapp faz uma ponderação muito razoável ao pensamento de Flusser ao criticar que o mesmo considera a imagem convencional da cidade, a de um espaço geométrico e físico. Chama a atenção a bipolaridade que o autor cria entre espaço urbano físico e o espaço virtual de conexões, o qual anula e torna obsoleto o primeiro. Tais crenças serão postas em pauta posteriormente por Gilles Deleuze e Pierre Lévy em seus textos sobre o atual – real para Flusser – e o virtual e, do que se trata tal virtualização. Entretanto, é possível notar que há um início de desenvolvimento sobre o que seria a virtualização e como essas novas cidades virtuais, funcionando em rede, impactariam nossa relação com ela e entre nós mesmos.

O ATUAL E O VIRTUAL
Atualmente, associamos espaço virtual ao que acontece nas telas dos computadores, celulares e tablets, entretanto, o que é novo é a tecnologia e não a virtualidade. Virtualidade não é uma propriedade exclusiva da internet, a suspeita sobre o grau de realidade do espaço virtual em relação ao espaço dos nossos corpos também é antiga e, não veio somente com a tecnologia.

Virtual --> virtualis --> virtus --> potência, força.

Alguma coisa que se encontre ainda em um estado potencial, dotada de força para passar a um estado diferente, dizemos que está em um estado virtual. Portanto, as coisas em estado virtual estão sempre abertas a transformações, abertas para suas possibilidades latentes.

“Enquanto tal, a virtualização não é nem boa, nem má, nem neutra. Ela se apresenta como o movimento mesmo do ‘devir outro’ – ou heterogênese – do humano. Antes de temê-la, condená-la ou lançar-se às cegas a ela, proponho que se faça o esforço de apreender, de pensar, de compreender, em toda a sua amplitude, a virtualização.



Como se verá ao longo deste livro, o virtual, rigorosamente definido, tem somente uma pequena afinidade com o falso, o ilusório ou o imaginário. Trata-se, ao contrário, de um modo de ser fecundo e poderoso, que põe em jogo processos de criação, abre futuros, perfura poços de sentido sob a platitude da presença física imediata.” 5

Um exemplo muito ilustrativo utilizado pela professora Ligia Saramago em sua aula na PUC-Rio6, é o do tabuleiro de xadrez. O tabuleiro de madeira que chamamos de real, tem igual grau de realidade de um tabuleiro em uma tela do computador. A diferença é que o tabuleiro de madeira caminha cada vez mais para seu fim, com uma virtualização menos potente e com menos possibilidades de atualizações, e o da tela, que existe em um estado virtual, tende a ficar cada vez mais contemporâneo, podendo sofrer inúmeras atualizações.

Portanto, não é certo opor o virtual ao real, já que este é o movimento de heterogênese de “tornar-se” outro a partir dele mesmo e, assim, abrir processos de criação e de fertilidade. Na verdade, o virtual se opõe ao atual.




No texto originalmente publicado em anexo à edição de Dialogues (Paris, Flammarion, 1996) ³, Deleuze afirma que não há objeto puramente atual, se referindo ao que identificamos erroneamente ser real em contrapartida ao virtual. Para ele, todo atual rodeia-se de uma névoa de imagens virtuais, ou seja, toda multiplicidade implica em elementos atuais e virtuais, e estes, entram num estreito circuito que nos reconduz constantemente de um a outro.

“Eles são ditos virtuais à medida que sua emissão e absorção, sua criação e destruição acontecem num tempo menor do que o mínimo de tempo contínuo pensável, e à medida que essa brevidade os mantém, consequentemente, sob um princípio de incerteza ou de indeterminação. (...) O atual é o complemento ou o produto, o objeto da atualização, mas esta não tem por sujeito senão o virtual. A atualização pertence ao virtual.” ³

O virtual também se difere do possível pois este é o que já está previsto enquanto o virtual é uma atualização não prevista. O possível se realizará sem que nada mude em sua natureza, é como o real, porém lhe falta a existência.



Para entender sobre o espaço no qual a arte e a tecnologia se inserem, me pareceu imprescindível entender melhor sobre os espaços virtuais, o qual a maioria das pessoas possuem uma visão equivocada a respeito do que ele é e seu contraponto com o real. A partir de filósofos reconhecidos pelo desenvolvimento de teorias nessa área, pretendo com este eixo, esclarecer o que é o espaço virtual, virtualidade, e como eles podem estar atrelados a arte e a arquitetura.
O CONCEITO DE VIRTUALIZAÇÃO
Pierre Lévy trabalha com o conceito de virtual no que ele qualifica de uma de suas principais modalidades: o desprendimento do aqui e agora.

“Quando uma pessoa, uma coletividade, um ato, uma informação se virtualizam, eles se tornam ‘não-presentes’, se desterritorializam. Uma espécie de desengate os separa do espaço físico ou geográfico ordinários e da temporalidade do relógio e do calendário. É verdade que não são totalmente independentes do espaço-tempo de referência, uma vez que devem sempre se inserir em suportes físicos e se atualizar aqui ou alhures, agora ou mais tarde.” 5



“Em seguida, Lévy passa a argumentar que a virtualização amplia a variabilidade de espaços e temporalidades. Segundo ele, novos meios de comunicação estabelecem modalidades diversificadas de tempo e espaço que diferenciam aqueles que estão envolvidos, entre si, e também em relação aos que se situam fora do novo sistema.” 5





Essa virtualização também reinventa a cultura nômade: faz surgir um meio de interações sociais onde as relações se reconfiguram com um mínimo de inércia e onde há a intensificação da mobilidade, sem a mobilidade do corpo. A nossa forma de desterritorialização não é mais geográfica, há uma multiplicação contemporânea dos espaços e, suas metamorfoses criam um novo estilo em que saltamos de uma rede a outra e onde há uma mudança das relações entre o privado e o público, o próprio e o comum.





A POÉTICA ARQUITETÔNICA NO ESPAÇO VIRTUAL
“A partir dos hibridismos entre a linguagem computacional e a de representação arquitetônica, são criadas formas no espaço virtual. Nesse espaço, as invenções são completamente desimpedidas da sua fisicalidade e podem assumir essa liberdade sob qualquer forma. Cria-se um veículo metafórico que se sobrepõe ao nível concreto, fundando uma forma de pensamento artístico capaz de imprimir vigor e sustentar o habitat da imaginação.” 6

No ciberespaço é possível ressignificar, criando novas possibilidades de sentido para um objeto arquitetônico e sendo possível explorar mais recursos poéticos e criar modelos que enunciam um jogo intenso de signos. Utilizando-se desses complexos algoritmos, muitos se lançaram no desenvolvimento de modelos arquitetônicos com linguagens reinventadas, como Greg Lynn, Sthepen Perrella, Lars Spuybroek, Fumio Matsumoto, Kas Oosterhuis, Robert Neumayr, Bernhard Franken, NIO Architecten, Kokkugia e Marcos Novak. Este último, diretor fundador do Laboratory for Immersive Environments and the Advanced Design Research Program at the School of Architecture, na Universidade do Texas em Austin, desenvolve suas pesquisas a partir de uma perspectiva fluida do ciberespaço, em geometrias de constantes estados transformativos.


“O ciberespaço é um habitat da e para a imaginação. O ciberespaço é o lugar onde o sonhar consciente encontra o subconsciente dormindo, uma paisagem de magia racional, da razão mística, o locus e triunfo da poesia sobre a pobreza, ‘do que pode vir a ser’ sobre ‘o que deve ser’. (NOVAK, 1991, p.274)” 6

Marcos Novak cria o conceito de “transarquitetura”, que seria o mesmo que arquitetura líquida, uma arquitetura desmaterializada que não se satisfaz mais com o espaço, forma, luz e todos os aspectos do espaço atual. Nela há a fluidez da imaterialidade e a transformação livre das formas extinguindo possíveis fronteiras entre arte e arquitetura. Como muitos pensam, e como já discutido por Lévy e Deleuze, essa propriedade plástica da transarquitetura não tira o senso de realidade, muito pelo contrário, o amplia.

Esse novo espaço é criado por linguagem digital, visível apenas por dispositivos e expressões lógicas da matemática e da computação. Ele é dinâmico, sendo capaz de se alterar e se reverter no tempo e capaz de conter interação. É desprovido de leis da física: relações de peso, tamanho e consistência são apenas visuais e qualquer processo físico pode ser simulado. Ele propõe novas experiências espaciais através da expressão poética do espaço virtual. Ele gera ações da intuição e imaginação através da fluidez formal, estados transformativos e analogia a imagens ilusórias geradas por pulsos luminosos.



“Ver as coisas, (ainda que por trás sejam apenas pulsos de energia luminosa convertidos em imagem), é um aspecto basilar à experiência humana, marcando efetivamente a prova de sua existência. A visão, como sentido predominante, absorve esses fantasmas de luz como coisas (MACHADO, 2000), e tornam-se fundamentais à experiência, levando impressão de veracidade, uma proximidade da experiência real com objetos concretos.” 6

Apesar de dizer que a visão é nosso sentido predominante, sendo capaz de validar a veracidade desses espaços virtuais, Fábio F. Lima também concorda em seu texto com a frase “O espaço não é objeto de visão, mas objeto de pensamento” (MERLEAU-PONTY, 1990, p.26). Como explicado no eixo “espaço cena”, os vários tipos de signos dependem também de diversas relações determinadas pelo usuário através de seus sentidos, tornando a percepção do espaço um aspecto complexo a ser tratado e os espaços virtuais não são excluídos de tal complexidade.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1- KAPP, Silke. A cidade como espaço teórico. In: Alice Serra; Rodrigo Duarte; Romero Freitas (ed.). Imagem, Imaginação, Fantasia: 20 anos sem Vilém Flusser. Belo Horizonte: Relicário, 2014.

2- LEVY, Pierre. O que é o virtual. São Paulo: Ed. 34, 1996.

3- Conteúdo de aula. Matéria “Espaço e pensamento”. Prof. Lígia Saramago

4- DELEUZE, Gilles. O atual e o virtual. Revista “Dialogues”. 1996




5- PIMENTA, Francisco J. P. O conceito de virtualização de Pierre Lévy. Facom/UFJF. v.4, n.1, p.85-96. jan/jun 2001. Disponível em: www.facom.ufjf.br. Acesso em: 25 Abril. 2021.

6- LIMA, Fábio. F. A poética arquitetônica no espaço virtual. Revista Estética e Semiótica, [S. l.], v. 2, n. 2, p. 27–39, 2012. DOI: 10.18830/issn2238-362X.v2.n2.2012.03.Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/esteticaesemiotica/
article/view/11857. Acesso em: 19 Maio. 2021.